segunda-feira, 28 de junho de 2010

Um ensino bilingue

No meu ver, o ensino tem vindo a cometer um grande erro ao longo dos anos, e nas mais variadas áreas, e este erro tem a ver com a linguagem utilizada na educação das pessoas - uma linguagem demasiado especializada, muitas vezes um jargão inacessível ao comum dos mortais. Este erro tem por base o facto de não sermos educados por educadores/professores, mas sim por especialistas. E a terrível consequência que esta diferença de linguagens - entre a linguagem terrestre e o incompreensível "marciano" -, é que põe muitas vezes de parte a possibilidade de compreendermos essa língua que por vezes parece tão distante, e descobrirmos que há muitas coisas do nosso interesse do outro lado da barreira linguística. Há muito mais conhecimento do nosso interesse do que aquele que nós pensamos, mas se temos sérias dificuldades em compreender algo, como é que nos podemos sentir interessados?

O que se passa é o seguinte. À medida que uma área do conhecimento (tomemos a Física como exemplo) se vai desenvolvendo, o seu conteúdo vai se tornando mais e mais especializado, e a sua linguagem vai se tornando mais e mais abstracta - a força que a Terra exerce sobre o nosso corpo e que nos impede de flutuar, puxando-nos constantemente para baixo passa a chamar-se de gravidade, e atribui-se o símbolo 'g'. Da mesma forma, todos os fenómemos do mundo físico e real vão sendo abstraídos em símbolos, gerando uma língua abstracta, complexa, e longe do real. Mas é importante distinguir a linguagem do significado por detrás. Toda a gente compreende o fenómeno da gravidade, mas muitos terão dificuldades em compreendê-lo ao olhar para fórmula 'F=(G.m1.m2)/r2'. E isto tanto acontece com o quase infinito número de fórmulas da física e da matemática, como com o vocabulário técnico utilizado na economia, na gestão, na política, e mesmo nas disciplinas sociais como a Psicologia e a Sociologia (talvez um pouco menos, por tenderem a ser menos exactas e científicas, pelo menos por enquanto).


Não estou aqui a pôr em causa a necessidade de tal dialecto hiper-especializado. Este fenómeno tem aquilo que Darwin chamaria de função adaptativa: é uma “evolução natural”, e esta evolução ocorre devido ao facto de se conhecerem melhor, mais ao pormenor, os fenómenos duma determinada área, e de serem precisos mais e mais nomes, e com um significado bem definido, para que não haja confusões quando há comunicação entre dois especialistas da mesma área – é adaptativo. Mas é adaptativo apenas para quem é especialista numa área específica. E mesmo assim, esse especialista teve de passar por uma longa batalha educativa até tentar conseguir falar esse língua estranha que “quis” adoptar.

Apesar da linguagem especializada ser uma consequência natural da evolução da ciência e do conhecimento, está completamente desajustada ao sistema educativo. Uma coisa é a linguagem a ser utilizada dentro de um círculo de especialistas, que se compreende que seja uma linguagem adequada ao nível de conhecimento que esses especialistas possuem, que evite confusões na comunicação, caso contrário seria como juntar um grupo de pessoas para trocar de ideias, em que uma falava Japonês, outra Espanhol, outra Inglês, etc. Mas uma coisa completamente diferente é tentar apresentar esse mundo de conhecimento a um leigo, a uma pessoa que faz parte da população “comum”, e que está a começar a ser exposta a essa área de conhecimento. Adoptar uma linguagem mais adequada faria aumentar não só o interesse dos alunos que ingressam em determinados cursos e cadeiras, como também cativaria muitos mais alunos a seguirem esse rumo.

Imaginemos um aluno que estuda física e é deparado com um sem fim de fórmulas, ou um aluno que estuda estatística e que se sente assustado com a quantidade de vocabulário técnico e de gráficos sem sentido para ele. Para alguns alunos este até pode ser o melhor método (porque têm uma especial apetência e facilidade em lidar com informação gráfica, com conteúdos abstractos, etc.), mas para grande parte dos alunos este método é desencorajador, desmotivante.

Na minha opinião, a grande causa deste problema é o facto de termos um sistema de ensino baseado na formação dada por especialistas e não por educadores. Os professores que leccionam uma cadeira tendem a ser pessoas especializadas naquela área (mas nem sempre), adoptando portanto a linguagem especializada respectiva. Ninguém está a dizer que os professores não deviam ser pessoas especializadas nas áreas que leccionam, pois não faria sentido nenhum afirmar uma coisa dessas. Faz sentido sim afirmar que não basta ser um especialista naquilo que se ensina.

Todos nós já fomos alunos, e todos nós já passamos por experiências diferentes com professores muito diferentes. A minha experiência diz-me que há dois aspectos chave a ser avaliados num professor além do conhecimento da sua área. Sem estes aspectos, aprender é como comer uma requintada receita... sem temperos. É muito importante que o conhecimento ensinado seja válido, seja relevante para a formação dos indivíduos, mas de que vale esse conhecimento se não conseguimos chamar a atenção dos alunos e despertar a sua paixão?

Um desses dois aspectos chave é a motivação/paixão. Um professor tem de sentir motivação para ensinar, tem de sentir prazer naquilo que faz, pois essa energia motivacional passa para o outro lado, para o aluno. Não há nada como ter um professor apaixonado por aquilo que ensina, pois essa paixão é muito contagiante, e toda a gente já experienciou isto de que falo.


O outro aspecto, tão ou mais importante, é a linguagem utilizada pelo professor. Independentemente de ser especialista, o professor tem de adoptar uma linguagem diferente a partir do momento em que entra na sala de aula, ou mesmo fora dela sempre que em contacto com os alunos. O professor tem de ser bilingue. Além de falar a linguagem técnica e especializada tem de conseguir comunicar cá para fora, para o mundo dos leigos e dos aprendizes, a essência da sua mensagem. As pessoas sentem-se mais facilmente interessadas e cativadas por coisas que compreendem. Isto é tão óbvio que fico incrédulo quando me deparo com um sistema educativo, supostamente desenvolvido, que continua a cometer o mesmo erro após tantos anos. O nosso sistema educativo não é nada desenvolvido, é extremamente desactualizado e ineficaz no contexto actual. O que se vê no mundo académico hoje em dia é uma série de professores que não são professores mas sim especialistas que dão aulas, e isto é um grave erro.

É, por isso, muito importante começarmos a educar educadores, a formar pessoas que saibam transmitir a sua mensagem e que saibam cativar o interesse dos alunos. É necessário continuar a ensinar o jargão, pois quem se quer tornar especialista numa área tem de conhecer a linguagem técnica, mas é também necessário ensinar com recurso a outras linguagens, de forma a despertar o potencial interesse das pessoas. E uma pessoa cujo interesse foi despertado por ter compreendido a lógica por detrás duma linguagem incompreensível, está muito mais disposta a se dedicar à memorização dessa linguagem, e está muito mais motivada para aprender.

Deparei-me, ao longo do meu percurso académico, com inúmeros casos de pessoas que estudavam sem compreender e, portanto, sem aprender. Acho que isto é simplesmente ilógico. A educação deve ser um processo que nos transforma interiormente, que nos faz crescer como indivíduos, e não um processo que nos enche de informação, que nos torna papagaios que repetem aquilo que ouviram, que dias depois já nem se lembram daquilo que tentaram memorizar. Esta é a base dum sistema educativo que procura criar currículos e duma sociedade que tem sede desses mesmos currículos. O sistema instaurado pede resultados em termos de números, e para se conseguir esses resultados e satisfazer essas exigências, muitas vezes nem é preciso aprender. Se os alunos adoptam esta postura é porque é isto que é exigido deles por parte da sociedade, e estimulado por parte do sistema educativo. É exigida uma média mais alta e um currículo mais vasto que incentiva a competitividade, e é estimulado um tipo de aprendizagem superficial devido à linguagem inacessível que é utilizada, que desmotiva e desencoraja os estudantes.

Se queremos educar realmente, temos de chegar aos alunos, falar a mesma língua deles, faze-los compreender, fazê-los aprender. Temos de entrar num processo de verdadeira comunicação com eles, e com isso transformá-los. Mas até aí chegarmos ainda há um longo caminho a percorrer.

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